sexta-feira, 1 de abril de 2011

POR UMA INFÂNCIA SEM RACISMO



Pois bem. Eu tô sempre meio atrasada nessa intensa blogosfera materna. A blogagem coletiva sobre infância e racismo, proposta pela Ceila, do Desabafo de Mãe acabou dia 28, e eu quase passei batido. Não porque o assunto não me toque: pelo contrário, como vai ficar claro nesse post. Mas por pura falta de tempo pra parar, refletir, escrever. Mas, como nada nessa vida é só acaso, foi justamente o Caio que me conectou tardiamente a essa blogagem. E aqui estou, escrevendo enquanto reflito, e refletindo enquanto escrevo, dedicando minutos que seriam do meu sono precioso pra entrar nessa roda também.

O fato é que ontem, enquanto nos preparávamos para dormir, Caio fala, do nada: Mamãe, minha cor não é branca, minha cor é preta! E eu, intrigada com aquilo, e achando graça, dou corda: ah, é filho, e porquê? Ele: Porque é bonito. Concordei com ele, e deixei a conversa fluir, sem querer muito extrair "ensinamentos" daquela espontaneidade bonita: se o assunto continuasse, eu embarcava na dele, senão, aproveitaria a pureza do olhar da criança de 3 anos, me sentindo feliz por ele perceber as coisas dessa forma e reafirmando internamente o necessário e cotidiano esforço por não transmitir a ele qualquer ranço de preconceito que em mim possa existir. E assim foi, ele terminou a conversa com: e a cor da mamãe também é preta. Eu gosto. E foi mudando de assunto, falando de super heróis e flautas, os assuntos do momento.

Existem muitas formas de se ensinar a diversidade a uma criança. Acredito nisso pessoal e profissionalmente. Mas, em se tratando de uma criança de quase 3 anos, como o Caio, creio que a vivência cotidiana, as práticas familiares e escolares são os principais elementos: não há como racionalizar ou verbalizar demais o assunto nessa idade. 

Caio convive com crianças e adultos diferentes dele e de nós desde sempre. Temos parentes e amigos índios, negros, descendentes de japoneses, loiros, de olhos azuis, verdes, castanhos, pretos, deficientes físicos. Em sua escolinha, há muitos filhos de imigrantes, em especial latinoamericanos e africanos. A avó de Dani é índia, e ele tem traços inconfundíveis dessa herança.

Recentemente, Caio começou a perceber certas diferenças entre as pessoas, de uma forma bem natural: começou pela cor dos olhos, percebendo que as tias (minhas irmãs) tinham olhos de cor diferente da do dele ou do meu. Falou nisso por muito tempo, sempre perguntando para reafirmar a diferença. Depois veio a percepção das diferentes cores de pele, mas ainda de forma sutil, através de um momento de pintura com lápis de cor em casa, e depois a constatação de que seu boneco preferido (o João, primo do Júlio, do Cocoricó) tinha uma cor diferente da dele.  Ele também já havia detectado a diferença física em um amigo nosso que tem uma deficiência em um dos braços, e em alguns livros em braile que minha irmã (ela trabalha na Fundação Dorina Nowill) deu pra ele e que tratam lindamente de temas como diversidade e diferença junto às crianças.

O interessante é notar como, para ele, o estranhamento da diferença não é acompanhado de juízo de valor: ele já tinha convivido com inúmeros negros quando se deu conta dessa diferença, brincando com cores e bonecos. Ele tem uma grande amiguinha e uma tia que são japonesas perfeitas (embora sejam já de uma segunda ou terceira geração de mestiçagem), mas essa diferença ainda não lhe chamou a atenção. Mas, ao perceber a diferença, seja da cor dos olhos, da cor da pele ou da deficiência física, ele expressou seu estranhamento, e eu procurei não reprimir, ou condenar. Deixei-o expressar essa estranheza, e tentei ajudá-lo a entender, apreender a novidade de percepção. E aí aquela descoberta passou a fazer parte do seu universo lúdico, e não causa mais estranhamento. Principalmente se, ao seu redor, elas estiverem de fato presentes, seja em brinquedos, livros, filmes e, principalmente, nas pessoas de seu convívio cotidiano.

Porque se a criança não convive com negros, para citar um exemplo, o estranhamento vai ser maior, certamente. Lembro que, há um tempo atrás, uma amiga comentou comigo que estava pensando em fazer algum trabalho social, para que as crianças dela convivessem mais com negros, pois estavam tendo um grande estranhamento cada vez que encontravam com um. Aquilo me cutucou: é fato que em nosso meio, de classe média, convivemos  com poucos negros, e a reação das crianças foi um escancaramento disso para aquela família.

Mas, aqui em casa isso é diferente, em especial por conta do meu marido. Embora eu sempre tenha convivido e tido amigos de diversas etnias e nacionalidades, posso contar nos dedos aqueles com os quais convivi em profundidade. Na infância, então, tive apenas uma única amiga negra. Nunca tive um amigo de origem indígena e, mesmo meu marido sendo descendente de índios, pouco conhecemos das suas raízes.

Dani, entretanto, se interessa pela cultura africana ou de matriz africana desde a adolescência, quando passou a praticar capoeira. Hoje, além de arquiteto e militante da cultura digital, ele é também professor de capoeira angola, praticante e produtor de cultura popular. Está envolvido em diversos projetos focados em educação para a diversidade, ligados à lei 10.639. Em nossa casa, desde sempre, temos tambores, berimbaus, imagens de capoeiristas negros, discos de samba, livros sobre escravidão e práticas culturais de origem africana, etc etc etc. Práticas e apresentações de capoeira, samba, jongo, coco, cacuriá, congada, maracatu são presentes na vida de Caio desde muito cedo e, por conta disso tudo, ele está crescendo em meio a referências culturais que carregam em si a diversidade, a diferença, o questionamento do preconceito, a luta por afirmação, coisa que nem eu, nem Dani tivemos em nossa infância (só para ter uma ideia, minha avó ficou horrorizada porque em minha festa de casamento tinham 2 negros... isso me entristece, mas é inevitável constatar que esse racismo está, de alguma forma, na pré-história de minha criação - mesmo que meus pais tenham me criado de forma bem diferente, eles foram criados sob essa perspectiva preconceituosa e discriminatória, e admiti-la, ainda que doa, é o primeiro passo para transformá-la, penso eu). 

Além disso, a escolinha dele também incorporou as diretrizes da Lei 10639 e, entre outras coisas, os alunos praticam capoeira na escola, o que claramente tem despertado o interesse do Caio pela cultura negra (africana, afro-brasileira, afrodescentente.... são tantas variáveis...), e, talvez por isso, aquela manifestação de ontem sobre ter a cor preta...

Enfim, eu poderia escrever muito ainda sobre o assunto, sei que não cheguei à conclusão nenhuma, mas o que vejo da nossa prática cotidiana e o que, de forma meio espontânea - já que nunca paramos efetivamente pra conversar: como vamos construir uma infância sem racismo para nossos filhos? - acredito de verdade que já estamos nesse caminho, e me alegro em poder dizer isso, pois vejo também em mim a tranformação.

[Esse post faz parte da Blogagem Coletiva iniciada a partir da Campanha da Unicef Por uma Infância sem Racismo]


13 comentários - clique aqui para comentar:

Bia Mello disse...

Oi menina,
Adorei o seu post, escrevi tambem a respeito e creio que a convivencia com a diversidade proporciona nos nossos filhos a possibilidade de uma vida sem tantos "traumas" e "pré-conceitos".
Vale sempre a pena discutir a respeito e a iniciativa da Celia foi de grande valia na blogosfera.
Um abraco,

Unknown disse...

Muito legal Thais! É esse contato com a diversidade, com pessoas de etnias diferentes que devemos estimular em nossa vida e na de nossos filhos! É com a prática que se aprende e se o contato é desde cedo, obviamente não haverá estranheza diante do que é diferente!

Bjos!

Dani Balan disse...

Só tenho uma coisa a dizer: Excelente, Tá! Perfeito esse post!
Beijo
Dani

Nine disse...

Que legal essa sua vivência, Thais! Depois dessa blogagem e lendo os textos de diversos blogs eu me dei conta de que convivi muito pouco com a diversidade, ainda mais vivendo em SC e no RS cuja colonização foi em grande parte européia. Se não tive muitos arroubos preconceituosos na juventude foi devido à minha mãe, professora, e meio intelectual, meio de esquerda naquela época, anos 80, sabe como é; além da escola, claro.

Depois disso percebi que a Ísis convive ainda menos com a diversidade, ela não está na escola ainda, seus amiguinhos da rua são brancos como ela, não sou do tipo que dá bonecas (falha minha, preconceito meu, feminismo ridículo e por aí vai) e aí parei para pensar que as referências dela sobre diferenças ainda não existem.

Dia desses no açougue perto de casa ela viu uma senhora negra e eu percebi o olhar de estranhamento dela, afinal ela nunca tinha visto alguém com aquela cor. Confesso que senti vergonha pela reação dela, de se assustar (ó céus!) e isso me chamou a atenção de que esse é um ponto que devo (devemos) trabalhar.

Vou linkar seu texto no meu, tá?
Beijos,
Nine

Paloma Varón disse...

É isso mesmo, thaís, os pequenos notam as diferenças mas não emitem juízo de valor, não condenam ninguém pela aparência. A não ser quando ouvem coisas que os adultos falam. Por isso nosso exemplo é fundamental.
Beijos e adorei o texto!

Priscilla Perlatti disse...

Texto sincero, Thaís. Como sempre.
Nunca achei que precisasse falar "mim preto, tu branco" pras minhas filhas. Isso é coisa que se percebe com naturalidade, se aprende com exemplos. Certa vez, a mãe de uma amiga das minhas filhas me sugeriu como explicar a diferença de cores das pessoas; "a mamãe até tem amigos negros também, não tem problema!" Essa hipocrisia é que é triste...
Bj grande!
Priscilla
Ps. Desculpa perguntar, o baby é pra quando? Quero saber tudo desse parto depois!

Ananda Etges disse...

Gostei muito do post!

Beijos, Ananda.

http://projetodemae.wordpress.com/

Susan disse...

Ah Thaís, como seus textos alegram meu coração. Lindo post!
Acredito também que é muito bacana desde pequenos, as crianças conviverem com todas essas diferenças. Tenho consciência dessa importância e quero passar isso para meu filho com muita naturalidade.
Um grande abraço.

Anônimo disse...

Amei o post! Esta luta contra o racismo é de todos, e começa pela família e valores que ensinamos aos nossos filhos. bjs Wan

micheliny verunschk disse...

Gostei muito do post, Thaís. Nina tem um tio negro e a moça que cuida dela praticamente desde que ela nasceu também é negra. E ela, pequenina, assim como o Caio, costumava dizer que quando crescesse ia ficar "chocolate", que era como ela se referia à cor negra. Dessa época, o livrinho preferido era Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado. E a boneca preferida também era negra. Hoje ela já sabe que quando cresce sua cor não mudará, o que acho uma pena, pois era tão lindo ela se afirmar numa cor que não era a sua de corpo mas que era a sua de alma. E como eu cantava, muito nessa época para ela: Alma não tem cor, porque eu sou branco. Alma não tem cor porque eu sou negro. Branquinho neguinho, branco negão... Enfim, de novo, adorei o post.

Anne disse...

Adorei Thá! Exemplo é tudo...
é mesmo um assunto largo, não ha conclusões. O que vale é refletir constantemente e ajustar nossas atitudes para livrarmo-nos de vez dessa sombra...
bjo

Marusia disse...

Oi,Thaís,
quero te parabenizar duplamente: pelo post e pela reportagem no Estadão!
Beijos!
Marusia

micheliny verunschk disse...

Thais, vc rebeu meu e-mail? Um beijo!